Conheci Manuel Bandeira como um dever de casa. Os da minha geração devem se lembrar do Vou-me embora p’ra Pasárgada como obrigação escolar. Esta foi, seguramente, a melhor maneira de me afastar do poeta (não duvido que muitos tiveram a mesma sensação). Com a faca no pescoço, não tinha jeito de mergulhar nos significados do lugar onde “sou amigo do rei”, onde há jeito de conversar com a melancolia, onde é possível montar em burro brabo, subir em pau-de-sebo e brincar na praia. O negócio foi apresentado como pergunta-e-resposta, tudo padronizado numa pedagogia medíocre, que fulminava a imaginação. Eu, e uma multidão junto comigo, queríamos mesmo era ir-nos embora da prisão acadêmica.
Não faz muito, reencontrei Bandeira. Surpresa: o poeta tinha uma queda pela crônica ! Um calhamaço precioso, com textos inéditos em livro, reúne as contribuições de Bandeira para vários jornais durante as décadas de 1920 e 1930. Vai de concursos de miss (!) a considerações sobre os modernistas que chegavam e comentários sobre as programações musicais do Rio. No meio do turbilhão, a surpresa maior. Na crônica Ainda não acabou a mania do discurso bonito, publicada no jornal recifense A província em 11 de janeiro de 1929, uma análise política ... premonitória.
Do que se trata ? O presidente norte-americano Herbert Hoover fez uma visita ao Brasil naquele ano. Business as usual. Bandeira ironiza a subserviência dos nossos patrícios e dispara:
(...)Eu sou dos que acreditam no perigo americano. Vejo no imperialismo da grande República uma força que só a revolução social pode fazer frente. Ora, os entendidos em questões econômicas acham com boas razões que o capitalismo americano ainda está longe da crise decisiva e terá ainda pelo menos um século para crescer.
(...)Mesmo que o senhor Hoover parta daqui muito enternecido pela paisagem carioca (...), o seu sentimento individual nada valeria contra a força da plutocracia yankee, autocaminhão pesado em plena embalagem.
Mais adiante, refere-se a uma declaração surpreendentemente sincera de Woodrow Wilson, antes de assumir a presidência dos Estados Unidos:
(...)Não é o povo que governa. Os patrões do governo são os capitalistas e os manufatureiros combinados. O governo dos Estados Unidos é filho do peito de interesses especiais. Um império invisível estabeleceu-se por cima das formas democráticas. Estamos colhidos na engrenagem de um sistema econômico desapiedado.
Finalmente, arremata:
(...)Wilson foi colhido na engrenagem sem entranhas. Os casos do Haiti, do México, de São Domingos, da Nicarágua, aí estão mostrando a potência inelutável de uma civilização a que mil interesses anônimos e formidáveis deram uma aceleração que só outras forças sociais igualmente formidáveis poderão contrastar.
Clichê: poetas vivem numa realidade paralela, noutra dimensão, voadores sem asas. Pode ser, mas quem então escreveu esta pequena aula sobre política internacional, sobre o imperialismo, sobre a luta de classes ? Um poeta, que nunca foi militante de esquerda, mas tinha olhos para ver.
A crônica foi publicada em 1929, ano do crash de Wall Street, que inaugurou a Grande Depressão nos Estados Unidos e cujos efeitos se estenderam até a Segunda Guerra Mundial. Foi a corrida armamentista, a economia de guerra, a saída para a crise do final dos anos 1920. No período 1938-1944, a produção voltada para a guerra aumentou 50 vezes nos Estados Unidos. Esta rearrumação industrial aumentou empregos e exportações, alavancando a economia norte-americana e permitindo uma distribuição controlada de renda que beneficiou a classe média. Faltava anular a “ameaça vermelha”.
A evolução das frentes de batalha na Europa e na Ásia não obedeceu apenas a razões militares. O exemplo mais dramático aconteceu em 1945, na frente japonesa. Documentação farta comprova que, desde 1944, depois dos bombardeios de saturação que destruíram centenas de cidades japonesas e do cerco total ao país, o governo nipônico estava seriamente inclinado a negociar uma rendição honrosa. Os serviços secretos ocidentais sabiam disso. Mesmo assim, em agosto de 1945, 150 mil pessoas foram incineradas em Hiroshima e Nagasaki, nos até agora únicos bombardeios nucleares do história. Um horrendo crime de guerra, em nome da “liberdade”. Mandou-se um recado claro para os soviéticos, que estavam prestes a invadir o Japão e desconheciam a tecnologia nuclear.
Terminada a guerra, os Estados Unidos eram a grande potência dominante. Mais: a guerra tinha permitido ao Grande Irmão do Norte um inédito controle interno. A enorme instabilidade dos anos 1930 tinha acabado, as disputas classistas perderam força. Como disse Lawrence Wittner: “A guerra rejuvenesceu o capitalismo americano.” A sinergia governo-indústria armamentista fez com que Charles Wilson, presidente da General Electric Corporation vibrasse. Sugeriu uma aliança permanente entre empresários e militares para uma “economia de guerra permanente.”
O esquema prosperou durante a Guerra Fria, com os resultados catastróficos conhecidos. Perseguição aos adversários internos (macartismo), intervenções militares diretas (Coreia, Vietnã, República Dominicana, etc.), apoio financeiro, logístico e militar a ditaduras assassinas (Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, etc,), instalação de bases militares espalhadas por todo o planeta (hoje são cerca de 560 fora do território norte-americano), investimentos militares maciços (previsão de US$ 1,5 trilhão para 2011, quase 70% do PIB brasileiro em 2010), intimidação física e ideológica contra governos que colocam obstáculos aos interesses do complexo militar.
Há reação. O poeta disse, com grande lucidez, que será necessário enfrentar essa máquina infernal com “forças sociais igualmente formidáveis”. A saída é mesmo por aí.
O Manuel sabia das coisas.
Abraço
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