'Martírio' retrata 100 anos de luta pela sobrevivência dos guarani-kaiowá
Documentário apresentado no festival de Brasília mostra o processo de exclusão da etnia indígena.
Brasília
Em outubro de 2012, muitos brasileiros expressaram seu apoio à causa dos guarani-kaiowá – etnia indígena sob constante ameaça de ter suas terras ancestrais confiscadas no Brasil, que neste momento havia recebido uma ordem judicial de despejo no Mato Grosso do Sul. Os indígenas enviaram uma carta pública às autoridades pedindo “ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui”. Seus apoiadores se mobilizaram, alarmados pela iminência do que julgaram ser um suicídio coletivo, incluindo em seus nomes expostos no Facebook a expressão “guarani-kaiowá”. A estratégia pressionou o Governo, contribuindo para a extinção da medida. Muitos dos que aderiram à causa, porém, ainda desconhecem a história desse povo em conflito há mais de 100 anos.
Martírio, documentário que estreou na competição do 49° Festival de Brasília, pretende acabar com essa ignorância – além de alertar o público para a situação de vulnerabilidade de cerca de 50.000 índios que têm seu direito à terra garantido pela Constituição. O filme, realizado pelo cineasta e indigenista Vincent Carreli em parceria com Ernesto de Carvalho e Tita, retrata a luta histórica dos guarani-kaiowá, resgatando seus momentos seminais, em contraposição às posturas ameaçadoras de deputados ruralistas que defendem no Congresso brasileiro os interesses de fazendeiros e do agronegócio. Sua exibição para um Cine Brasília lotado, na última quinta-feira, foi acompanhada de gritos, vaias e palmas da plateia, que não esperou a sessão acabar para manifestar sua comoção. “Foi uma reação emocionante, muito além do que a gente esperava”, confessou Carelli, que disponibilizará o filme em breve na Internet, além de distribui-lo em comunidades indígenas e instituições relacionadas a elas.
O longa percorre o tortuoso caminho entre o Mato Grosso do Sul, ao centro do poder, em Brasília, onde atualmente se decide – com a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 – se a demarcação das terras indígenas deixará de ser tarefa exclusiva do Executivo, com a Funai, e passará ao Legislativo. Há muitos momentos marcantes. Vincent Carelli destaca os que para ele, foram impressionantes de viver além de retratar: a morte e o desaparecimento do corpo por pistoleiros do líder Nísio Gomes na comunidade do Guaiviry em 2011 (“Para os índios é muito desorientado não ter o corpo, não poder enterrar”); a mobilização dos índios na retomada de Pyelito Kue, quando foi divulgada a famosa carta (“Eles anunciavam que ficariam lá até serem mortos, não que se suicidariam, mas o entendimento geral de que haveria um suicídio ajudou muito a deter o despejo”); e o momento em que um policial federal pressiona os índios a desocupar essa mesma terra de ocupação tradicional indígena porque “uma ordem de despejo tem de ser respeitada a qualquer custo” . Esta última parte guarda uma curiosidade. “Essa foi uma cena gravada pelo tradutor que participava da conversa, a quem entregamos uma câmera”, conta Carelli.
Narrado em primeira pessoa, com farta documentação e imagens gravadas pelo diretor por mais de 40 anos, o documentário é denso e extenso, mas consegue manter desperto o interesse tanto de quem é familiar ao tema como de quem o desconhece totalmente.
Para o diretor do filme, sua grande contribuição é apresentar a gênese desse conflito, que remonta ao século XIX e à Guerra do Paraguai, tendo transitado a história brasileira até os dias atuais. "Ao longo desses 100 anos, o processo de exclusão e omissão em relação aos guarani é contínuo”, diz. Mas não só isso. Do lado dos índios, o diretor enxerga a importância de ter registrada sua narrativa, sobretudo para a reflexão das gerações atuais. “Muitos se sentem perdidos e, depois de ver ou de fazer um vídeo sobre a própria realidade, passam a pedir aos mais velhos que lhes contem a história e que lhes ensinem os costumes antigos”, revela Carelli, responsável pelo projeto Vídeo nas Aldeias – atualmente exposto na edição 32 da Bienal de Artes de São Paulo – desde 1986. Durante a produção, ele encontrou uma farta documentação que, a seu ver, tem de ser descoberta não só pelos índios, mas pela “parcela da sociedade civil que se incomoda”. "Há muitos documentos oficiais que registram esse processo e é preciso trazer tudo isso à tona”.
Martírio, cujo financiamento contou com cerca de 85.000 reais doados por mais de 1.000 pessoas via crowdfunding, é o segundo título de uma trilogia que tem início com Corumbiara – onde em 1995, em Rondônia, 12 índios foram dizimados – e que terá fim com Adeus, capitão. Este último, ainda em fase de produção, pretende retratar, segundo Vincent Carelli, “os efeitos do capitalismo numa sociedade antes igualitária”. “O filme mostra a rede de sanguessugas que se instala ao redor dos índios que recebem indenizações financeiras e passam a se endividar”, explica. É um cinema como registro de um tempo que passa, sem nunca avançar.
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