Sem confiança de que podem controlar o Butantan, tentam comprá-lo; para as empresas, o ideal é o país voltar a ser um enorme mercado para vacinas
Isaias Raw*
A empresa Sanofi propôs ao governador de São Paulo a compra da divisão bioindustrial do Instituto Butantan. O Brasil está sendo loteado: um grande volume de vacinas de Biomanguinhos é importada a granel de uma multinacional; a Funed (Fundação Ezequiel Dias), que nunca produziu vacinas, passará a envasar a vacina contra meningite C de outra multinacional, que se propõe a construir a sua "fábrica" na região Nordeste, oferecendo cem empregos!
Voluntários são recrutados no Brasil para testar as vacinas, anunciadas como brasileiras, que serão produzidas no exterior. Querem que voltemos a ser o consumidor de vacinas importadas. Não basta o uso das patentes para bloquear a produção, como mostrou o professor Rogério Cezar de Cerqueira Leite em artigo neste espaço ("Patentes, pirataria e servilismo", 7/11) e a venda do produto a granel.
É preciso liquidar o Butantan, porque nós ousamos desenvolver novas vacinas e a tecnologia para sua produção! Voltaríamos a ser mais um enorme mercado, num país sem desenvolvimento.
Aceitaremos ser colônia? Cinco empresas fornecem 80% das vacinas para o mundo! Durante a ameaça da pandemia da influenza AH1, aproveitando o pânico criado, as empresas venderam para os países médios e pobres vacinas por preços entre seis e sete euros.
Para atender o Ministério da Saúde, fomos obrigados a importar, usando um contrato provisório, 40 milhões de doses da vacina AH1.
Em 2011, como a pandemia não matou mais do que a influenza sazonal, passaram a oferecer a mesma vacina (com mais dois sorotipos) por 0,60 euro!
Desenvolvemos um adjuvante e uma vacina mais eficaz, aumentando a capacidade de produção anual, com os mesmos ovos, de 20 milhões para 150 milhões de doses, atendendo até o ano de 2013 toda a demanda nacional.
Cometemos o "pecado" de desenvolver uma nova vacina de tétano-difteria-pertussis, mais eficaz e segura, por R$ 0,30, contra a vacina que as multinacionais copiaram do Japão e que custa 50 vezes mais -vacina esta que a Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde, pelo custo e eficácia, não recomendam.
Com o adjuvante, aumentaremos a produção das vacinas de hepatite B, raiva humana e leishmaniose canina (que evita a vacinação de crianças). Com o surfactante pulmonar, apoiado pela Brasil Foods, evitaremos 30 mil mortes de bebês por ano, minutos após o parto. A vacina contra dengue já foi produzida no Butantan e poderá ser fornecida ao ministério por cerca de R$ 2. Tentam bloquear o ensaio clínico, que começa em poucos meses.
Demonstramos o óbvio: quem não desenvolve e produz é uma subsidiária da "matriz"! Sem confiança de que podem controlar o Butantan, tentam comprá-lo.
*ISAIAS RAW é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho científico e tecnológico da Fundação Butantan. Foi diretor do Instituto Butantan, fundador da Funbec (Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências) e da Fundação Carlos Chagas.
Folha de São Paulo
Patentes, pirataria e servilismo
Na década de 1970, os EUA, com o auxílio de alguns países europeus, patrocinaram uma violenta campanha mundial em favor da adoção, pelos países em desenvolvimento, de legislações patentárias que incluíssem medicamentos e alimentos que, até então, por serem itens considerados essenciais para a sobrevivência, eram excluídos.
Por Rogério Cezar de Cerqueira Leite*
Vamos, pois, rever os argumentos utilizados a favor da adoção de uma legislação patentária. Esses derivam de três vertentes principais:
1) O inventor deve ser recompensado de seu esforço e talento;
2) A criação de um monopólio, uma reserva de mercado, promove investimentos e, portanto, a produção de bens;
3) A existência de legislação patentária é um estímulo à inovação.
A ideia de retribuição apela aos nossos sentimentos românticos, pois ainda retemos em nossa memória a imagem do inventor solitário, cabelos longos, olhos esbugalhados, ligeiramente doidivanas, porém inofensivo.
Mas essa é uma espécie extinta. O proprietário da patente é hoje uma grande corporação ou instituição, pois o benefício é para quem paga o salário do inventor.
Os EUA, seguindo o exemplo dos países europeus, mudaram recentemente sua legislação sobre propriedade intelectual de maneira drástica e desconcertante.
A patente passa a ser concedida a quem pedir o registro, e não a quem inventa, ou descobre, ou desenvolve o produto.
Com isso se consagra, pelo menos do ponto de vista dos EUA, o conceito de que a patente é unicamente um mecanismo de estímulo à produção. E não é mais estímulo à inovação nem retribuição.
Cai por terra qualquer conceito de justiça, de moral, de direito. Com que cara vão ficar os apoucados que chamaram de "pirataria" a defesa de interesses nacionais diante dos excessos contidos na legislação patentária imposta ao Brasil pelos EUA (ditada em Washington pelo Departamento de Comércio daquele país a dois eméritos ministros brasileiros durante o governo Collor).
Nessa nova forma, o princípio pragmático que orienta a legislação patentária americana é mais um incentivo à espionagem industrial do que à inovação. E não há dúvidas de que logo será seguido o exemplo dos EUA pelos países que ainda insistem na fórmula que diz que o privilégio é de quem inventa.
Ora, se o registro de uma patente serve apenas ao interesse do Estado em promover a produção de um bem pela concessão de reserva de mercado, então essa concessão deve ser avaliada caso a caso. Deve deixar de ser um direito do proponente, a quem atualmente basta seguir certas regras burocráticas.
E seria, pois, desejável que incluísse uma planilha de custos para que preços possam ser estabelecidos, sem que haja prejuízos para o cidadão. Como também deve a duração do monopólio ser negociada.
Não devemos esquecer o que foi verificado pela Comissão Churchill do Senado americano, ou seja, que 95% dos registros de patentes no México, Brasil e Argentina serviam para impedir e produção, não para incentivá-la.
*Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 80, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), presidente do Conselho de Administração da ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron), membro do Conselho de Ciência e Tecnologia da República e do Conselho Editorial da Folha.
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