HEROI DE NOSSA GENTE
Como tantos de nós, tenho umas estantes horrorosas de livros sobre torturas no mundo e aqui. O terror está ali, desde Roma ao Iraque, do Estado Novo ao DOI-CODI e DOPS, aliás, um pouco esquecido ultimamente. Não devia, seu diretor na época áurea é,hoje,senador da República.
Um dos mais antigos torturadores brasileiros, foi o fundador da Casa da Torre, o primeiro da dinastia Garcia D’Ávila, Bahia, inventor do pau-de-arara com pimenta no rabo, lá por 1650. Garcia, cujas terras ocupavam a metade da Bahia, chegando ao atual Piauí, é herói da nossa expansão territorial. Não sabemos se era um sádico, mas sabemos que a Coroa portuguesa não legaria ao Brasil o território que tem hoje se Garcia não torturasse. Guardadas todas as proporções, a tortura praticada por aquele pai da pátria contra servos, escravos e agregados foi política de estado.
A tortura tem duas vertentes principais: desvio de personalidade, de fundo sexual como o seu aparente oposto, o masoquismo; e forma de dominação social, como a praticada pelo Barão da Torre e seus herdeiros, os carcereiros e investigadores das delegacias comuns. Em certo sentido, é irrelevante que sejam desviantes ou normais.
Os torturadores dos DOPS e DOI-CODIS não começaram nesses órgãos. Vieram quase todos da polícia comum. Sua escola foram os presos “correcionais”, os “corrós” que algumas vezes nós, os presos políticos, tentávamos defender: ladrões, traficantes, trambiqueiros e infratores sem advogado. Para cada preso torturado, naqueles anos, se contariam cem, talvez mais, detidos comuns. Não têm, até hoje, quem proteste por estes, quem os represente na Justiça. Só isso demonstra que a tortura brasileira é forma de dominação social. Ou política de estado, que é a mesma coisa.
Odeio torturadores, por experiência própria. Esse ódio não leva a grande coisa, a não ser o gozo de vê-los apontados, exonerados, envergonhados para sempre diante de filhos e netos. O gozo de vê-los confessar que infligiram dor máxima a outros por amor à pátria: a mãe-pátria.
Acontece que política não se faz com ódios. Eis aqui o governo Lula atrapalhado. No decreto de direitos humanos, que criou a Comissão de Verdade, ministros militares o ameaçaram, ele capitulou. A capitulação tem dois significados, pelo menos.
Pode significar covardia, medo de ser derrubado, embora hoje não haja clima para golpes de estado na América Latina. A cerimônia de assinatura do decreto, em que abraçou Inês Etienne Romeu, irritou “profundamente” os chefes militares.
Mas a capitulação pode significar sagacidade política. Lula recuou na forma para manter o conteúdo, a saber, a exposição televisiva da tortura pela Comissão de Verdade. Serão convocados alguns torturados, é o de menos. Pode ser até eficaz para mais encurralar os torturadores. Estes mostrarão a cara; se não falarem, pior.
Caberá então a nós, os que não fazemos política apenas com ódio, mostrar que os torturadores comuns, os das delegacias, são irmãos siameses dos torturadores da ditadura. Ambos descendem daquele glorioso Garcia D’Ávila.
Texto de Joel Rufino dos Santos,profesor de Historia,rector da UCB,e meu melhor amigo,sem desprezar a outros.
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