Ditadura exposta
Anos de chumbo
Pesquisador encontra dificuldades para doar acervo de 20 mil páginas de documentos secretos
Ana Paula Siqueira
Há mais de uma década, o historiador e jornalista Hugo Studart começou a colher documentos e depoimentos de militares que atuaram na guerrilha do Araguaia. São cerca de 20 mil páginas que incluem arquivos das Forças Armadas e fotografias da guerrilha utilizadas para suas teses acadêmicas. Mas, apesar do grande acervo acumulado, Studart tem tido dificuldades para encontrar uma instituição que receba e torne acessíveis as informações obtidas por ele. Pior: o historiador está receoso de que, ao fazer a doação a instituições públicas, os documentos possam ser classificados como secretos, deixando de ser acessíveis aos pesquisadores.
Ex-ministros de Lula são citados como terroristas
Entre os arquivos secretos – inéditos até hoje e obtidos com exclusividade pelo JB – está o Documento de Informação, produzido pela Agência de São Paulo do Serviço Nacional de Informação, datado de 14 de maio de 1973, que traz a relação de presos e mortos em “combate com os órgãos de segurança”. Esses documentos referem-se à guerrilha urbana e, assim como outros arquivos, “são trabalho para outro historiador”, segundo Hugo Studart.
As mortes aconteceram “em decorrência da resistência que ofereceram por ocasião de suas prisões” durante o “entrevero com os órgãos de segurança”, registra o documento. Todos os mortos seriam da Aliança Libertadora Nacional (ALN): João Carlos Cavalcante Reis (“Marcos”), Arnaldo Cardoso Rocha (“Giba”), Francisco Emanuel Penteado (“Júlio”), Francisco Seixo Okama (“Baiano”), Romualdo Mouth Queiroz (“Papa”), Ayrton Adalberto Mortati (“Tenente”) e Marcio Beck Machado (“Luiz”). Os nomes entre parênteses, pelo que indica o documento, seriam apelidos usados pelos opositores ao regime.
Antonio Benetazo (“Joaquim”) e Alexandre Vanucchi Leme (“Minhoca”) teriam sido mortos ao “cobrirem um ponto e se lançarem na frente de veículos que trafegavam em alta velocidade”, segundo o relatório.
Subversão
O documento relata, ainda, que 57 opositores ao regime foram “condenados por subversão”. Entre eles, o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República durante o governo Lula, Paulo Vanucchi, condenado a 14 de reclusão.
Franklin Martins, ex-ministro da Comunicação Social também no governo Lula, foi condenado a 18 meses de detenção, assim como o deputado federal José Mentor (PT-SP), condenado a seis meses de prisão. Ambos acusados de envolvimento no “processo de Ibiúna”, que segundo o documento, foi resultante do “XXX Congresso da União Estadual dos Estudantes”, que provavelmente se refere ao encontro realizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1968, em que cerca de 700 pessoas foram detidas.
No total, 82 pessoas foram presas, 42 condenadas e outras 12 tiveram as prisões preventivas decretadas. Elas integrariam, segundo o documento, a ALN, o PCdoB, o PCB, a Política Operária (Polop) e a Ação Popular (AP).
“Irreversível”
Na conclusão do relatório, há o reconhecimento da redução das atividades militares dos grupos de esquerda rumo à atividade política propriamente dita. “Pelo que foi observado, as atividades subversivas nesta área se encontram estacionárias, tendo sido notado um acentuado decréscimo das chamadas ‘atividades militaristas’ por parte das organizações subversivas-terroristas as quais, atualmente, estão adotando uma linha política que não se coaduna com as chamadas ‘ações militaristas’”.
Ao final uma insígnia completa o documento: “A Revolução de 64 é irreversível e consolidará a Democracia no Brasil”.
Médici liberou irmão de Geisel para matar
A tese de Hugo Studart se transformou no livro A Lei da selva – Estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a guerrilha do Araguaia. Lançada em 2005, a publicação revela a existência de três campanhas distintas realizadas para combater os guerrilheiros. No entanto, nas duas primeiras não há indícios de violação dos direitos humanos. Os 15 guerrilheiros mortos, apesar da falta de identificação dos corpos, estavam enterrados no cemitério da cidade. Os documentos estariam praticamente todos preservados e as leis de guerra teriam sido respeitadas.
Na Terceira Campanha, contudo, o historiador descobriu que o comando das operações foi tirado das tropas regulares e passado ao Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto. No fim de 1973, os agentes retornaram à região do Araguaia disfarçados e, antes do ataque, descobriram rotinas e planos dos guerrilheiros. Quando estavam com todas as informações, retiraram os agentes e voltaram com as tropas.
– Foi diferente porque, dessa vez, não foram mandados soldados comuns, mas paraquedistas, homens em trajes civis e com identidades falsas. Todos mandados para a mata com ordem de não fazer prisioneiros – relata o historiador. – Essa é a campanha mais polêmica e praticamente não há documentos.
O historiador revelou a cadeia de comando e o nome dos comandantes das três campanhas. Além disso, ele descobriu que a ordem de não fazer prisioneiros – interpretada como licença para matar – foi dada pelo então ministro do Exército, Orlando Geisel, após consultar o presidente Emílio Garrastazu Médici, e cumprida pelo chefe do CIE, general Confucio de Paula Avelino.
De acordo com Studart, os militares também “terceirizaram” a luta. Eles ofereciam prêmios aos índios e moradores da região pelas cabeças dos prisioneiros.
Direitos humanos violados
Pelo menos sete guerrilheiros foram decapitados. Estima-se que entre 25 e 30 tenham sido mortos durante a Terceira Campanha, pelas equipes de execução militar Zebra e Jibóia. Segundo Studart, foi nesse o período que os direitos humanos foram violados. A falta de informações, completa o pesquisador, deve-se a outra tática empregada pelos militares. Em uma operação em 1975, a maior parte dos documentos comprometedores foi incinerada.
Um dos raros documentos que sobraram é o Relatório Especial de Informações nº 6, produzido pela Agência de Informações em Marabá (PA), que remete notícias ao comando sobre a situação dos prisioneiros e dos próprios militares entre 5 de outubro e 15 de novembro de 1973.
Além de informações sobre as ações dos guerrilheiros, o documento também revela as baixas sofridas durante os confrontos. As anotações manuscritas mostram que os militares ainda não sabiam quem eram os guerrilheiros que eles matavam, esclarece o historiador.
Historiador quer manter o acesso liberado
A maior parte do acervo é de arquivos da guerrilha do Araguaia, mas há também informações sobre os enfrentamentos urbanos no período da ditadura. Cerca de 200 páginas foram usadas por Hugo Studart para elaborar sua tese de mestrado pela UnB. E ele calcula que outras 500 embasarão seu doutorado. As fontes do historiador foram, em sua maioria, militares que já passaram, entre outras áreas institucionais e de informação, pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), pela Justiça Militar e pelo Superior Tribunal Militar (STM).
Antes mesmo do Wikileaks se tornar mundialmente famoso por divulgar documentos secretos e nada confortáveis sobre os governos de diversos países – inclusive do Brasil – Studart buscava uma plataforma que tornasse públicos e acessíveis os resultados de suas pesquisas. Ele imaginava que o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, seria o lugar ideal. Mas isso durou pouco.
O jornalista diz ter sido informado de que poderia doar os documentos. No entanto, eles seriam guardados e poderiam voltar à classificação de secretos. Impondo, inclusive, obstáculos para o historiador consultar os arquivos que ele mesmo doou.
– Tenho a impressão de que os militares da repressão hoje são mais transparentes com relação à divulgação de documentos secretos do que o Arquivo Nacional – critica.
No entanto, o diretor-geral da instituição, Jaime Antunes, afirma desconhecer o fato. Segundo ele, o Projeto Memórias Reveladas continua a receber arquivos e documentos que retratem a história do país, e que isso já aconteceu, inclusive, com textos sobre a própria guerrilha do Araguaia.
Antunes afirma que os únicos documentos que têm “algum tipo de controle” são os que foram produzidos por órgãos institucionais. Mas que, mesmo os documentos secretos, podem ser abertos ao público depois de 30 anos.
– Se o doador do documento não impuser controle, ele será aberto. Quem passou a informação não estava suficientemente a par do tema – corrige Antunes, que afirmou ao JB estar disposto a receber os documentos de Studart.
Studart, por sua vez, rebate com duras críticas à instituição.
– O pessoal do Memórias Reveladas pediu demissão justamente por discordar da política de não transparência do Arquivo Nacional – dispara.
Programa
O historiador e jornalista afirma que a UnB já possui um software desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), em plataforma colaborativa, como a Wikipedia e o Wikileaks, e que seria a melhor plataforma para abrigar os documentos, permitir que qualquer pesquisador tenha acesso aos arquivos pela internet e, ainda por cima, colaborar com o fichamento e análise dos respectivos documentos.
Studart diz que a instituição tem a sua preferência para receber o material. Ele afirma já ter mantido uma conversa preliminar com a reitoria, mas até o momento não houve grandes avanços.
– Desde o início do ano, venho tentando oferecer à universidade um projeto que dê transparência aos arquivos – conta.
A reportagem entrou em contato com a UnB, mas até o fechamento desta edição não houve resposta.
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